O rosto, cheio de marcas da vida, cobria a pele antes graciosa e jovem. Seu cabelo rebelde projetava uma personalidade marcante. Definitivamente, não passaria despercebida pela rua. Isso não seria necessariamente um problema; andava tão distraída com o barulho da sua mente que não notaria qualquer olhar ou burburinho produzido por sentimentos tórridos de terceiros.
Continuou pela rua quando um pequeno pub chamou a atenção dos olhos marejados pelo vento gelado. A iluminação baixa, poucas mesas, o som acústico introspectivo tornavam aquele lugar exatamente o que ela precisava. Sentou-se perto do balcão, pediu um drink e apenas respirou; seus olhos vagaram pelo lugar despretensiosos. As paredes eram cobertas por um papel rústico e gasto pelo tempo. Quadros de personagens importantes da música...
A bebida forte relaxou sua mandíbula e a deixou mais à vontade para continuar a exploração do ambiente. Pacientemente, cada detalhe capturava o tempo necessário do seu olhar explorador; porém, em um dado momento, ele congelou ao se deparar com olhos frios e intensos, fazendo nela a mesma análise que ela estava fazendo no ambiente. Corou instantaneamente, por pouco não engasgou com a bebida.
Percebeu que o estranho, de olhos frios e intensos, barba cerrada e agora com um sorriso perturbador desenhado no rosto, acenava discretamente com dois dedos, saudando-a com um cumprimento quase militar. E agora? O que faria?
Poucas pessoas ocupavam o pub, e ela então se sentiu constrangida em não responder ao cumprimento, e o fez brevemente com a cabeça. Abaixou o olhar para a taça que estava nervosamente sendo apertada pelas mãos. Distraidamente, o garçom limpava o balcão, um palito no canto da boca, porém o flerte não passou despercebido por ele. Sorriu para si e momentaneamente tentou contar quantas vezes já presenciara aquele tipo de enredo.
Decidida a não se importar com aquele pequeno incidente, continuou bebendo seu drink; porém, seu coração começou a acelerar. Intrigada, levou a mão ao peito e então notou a presença de alguém às suas costas. Tentou elaborar mentalmente uma desculpa para levantar e sair, mas, para sua surpresa, e talvez até desapontamento, o estranho tão somente se dirigiu até o garçom, rindo e trocando algumas palavras que ela pôde notar serem íntimas, e então saiu.
Aquela sensação de desapontamento permaneceu em seu coração por mais alguns instantes; porém, o calorzinho gostoso da bebida estava se espalhando pelo corpo. Ela então sentiu vontade de dançar. Já estava no terceiro drink, chamou o garçom e perguntou onde encontraria um lugar tão legal como aquele pub, mas, dessa vez, com uma pista de dança. Ele, por sua vez, sorriu do entusiasmo da moça e pensou: turistas. Ainda sorrindo, entregou-lhe o endereço de uma balada que possivelmente agradaria aquela criatura solar que não parava de falar e gesticular com as mãos.
Observando a graciosa e destemida garota que saía pela porta do pub, este narrador percebeu que não havia mencionado o nome da criatura que simplesmente entrara no bar com um semblante de sofrimento e agora era quase que impossível não rir das tentativas de passos de dança que ela ensaiava, mesmo de salto pelos paralelepípedos da estreita rua. Ainda que a noite já se ia pela metade, o céu estava colorido de um azul-escuro, talvez pela tonalidade da luz que toda aquela carga de energia descendo saltitante pela rua proporcionava...
Narrador desatento, perdeu-se novamente na descrição da personagem e não mencionou seu nome mais uma vez. Que coisa engraçada, os pés estavam tão familiarizados com o trajeto que parecia já ter feito várias vezes aquele roteiro. Boba, como poderia? Estava em outro país, além disso... Interrompeu seu raciocínio para tapar a boca que simplesmente emitiu um "puta que pariu" ao avistar a entrada deslumbrante do lugar à sua frente. Que lugar maravilhoso! Parecia um portal que a levaria para um sonho maluco, ilusório e indecente.
Sorriu de forma adolescente. Aquela viagem talvez custasse seus rins, talvez o emprego, mas isso seria uma preocupação para outro dia. Entrou no clube e a admiração aumentou, se é que isso era possível. E a música? Que delícia de ritmo! Era impossível não querer dançar, o espaço era de um conforto inacreditável, vários pontos com poltronas imensas e elegantes. E o tanto de bebida? Ilhas esparramadas pelo lugar, onde era possível escolher o que tomar. Ela deslizava pelo local de olhos bem abertos, tentando anotar fotograficamente todos os detalhes.
Dirigiu-se até uma das ilhas, ainda em êxtase com todas aquelas maravilhas, e, distraidamente, tentou preparar sua bebida. Derramou um bocado de gim e rapidamente olhou para ver se alguém teria notado sua desastrada vibe de barman. Terminou de misturar alguns ingredientes que estavam sob a bancada e saiu rapidamente, antes que derrubasse mais alguma coisa e fosse expulsa do lugar.
Sorriu da sua piada interna e provou o drink que acabara de criar. Para sua surpresa, não estava dos piores. Observou a pista intimista e, como a luz estava mais baixa, não foi possível identificar todas as pessoas que dançavam. "Melhor assim", pensou, caso ela dançasse de forma desengonçada.
A luz mudou e, de forma quase que sedutora, ela se viu arrastada para aquele amontoado de gente que simplesmente deixava o corpo se mover conforme o ritmo. A música começou a tocar em compassos lentos e longos, contraltos e sustenidos se misturando de forma calorosa, deixando um ar misterioso e convidativo. Fechou os olhos e se deixou guiar pelas notas aveludadas daquela canção. Mais uma vez, se sentiu surpresa: aquele ritmo era novo, mas seu corpo conhecia os movimentos de uma forma tão incrível que ela não acreditava no que estava acontecendo.
Estava dançando de olhos fechados e compenetrada somente nos sentidos que eram despertados pela melodia. E, ao rodar para contemplar um passe que a música pedia, foi abruptamente interrompida pelo choque de um encontrão com outra pessoa. Seria lançada de forma vergonhosa ao chão pela falta de equilíbrio causada pelo choque, mas foi amparada rapidamente por dois braços que a seguraram, evitando a queda. A proximidade com o seu salvador foi tão brusca que seu coração estava disparado, mas, quando seus olhos subiram em direção ao rosto da pessoa que ainda a segurava pela cintura, sentiu o sangue esquentar em seu rosto, corando-a.
— Você!?! — A pronúncia saiu ao mesmo tempo, pelos dois. — Desculpa. — Novamente, os dois pronunciaram a mesma frase.
Ela se desvencilhou dos braços do estranho, dos olhos intensos e que agora lhe causavam um tremor pelo corpo inteiro.
Foi inevitável não rir da situação. Dois ambientes diferentes e a mesma pessoa estava desconcertando seu estado de espírito. Olhou diretamente para aquele homem que estava em seu destino naquela noite. Porém, dessa vez, ela pôde perceber uma profunda solidão; o olhar gelado e intenso refletia dor. O que será que aquele ser tão complexo estaria passando? Por que se sentiu tão atraída por ele? Distraída com suas indagações, não tinha notado que ele continuava parado e também estava, possivelmente, lhe analisando mentalmente. Rapidamente, se virou para sair do campo de visão dele, porém foi subitamente parada por uma mão que segurou seu braço.
— Não acha que já tivemos encontros suficientes essa noite e que isso pode significar alguma coisa? Deixe eu me apresentar, meu nome é...
Foi um momento muito estranho: se viu diante de uma pessoa perturbadora, trocando ósculos e dizendo seu nome. Como se explica um singelo toque que perturba todos os sentidos de uma pessoa fria e controladora como ela? Estava sorrindo de uma observação feita por ele e fazendo um mapa mental das possíveis saídas para aquela situação.
Engraçado que sentiu como se sua alma observasse aquele diálogo em 3D, mas esse narrador insano que estava fazendo essa alusão, confundindo a cabeça da nossa personagem.
Ele contou rapidamente informações sobre sua vida, tais como o que fazia ali, por que estava sozinho, e isso merece destaque. Não era muito social, gostava do silêncio interior, mas estava tão à vontade contando sua intimidade que ela quase não acreditou naquela descrição.
Como era possível ouvir uma pessoa falar e quase ouvir, em dados momentos, sua própria voz, falando de si mesma?
Esse pensamento a deixou nervosa; começou a apertar o copo vazio. Esse sinal de nervosismo não passou despercebido. — Venha, vamos tomar uma água. Ali tem uma varanda com uma vista espetacular dessa parte da cidade. — Ele então a conduziu por entre as pessoas que dançavam absorvidas em seus mundos paralelos.
Realmente, o lugar que ele havia mencionado era de uma beleza absurda. Aquele momento de contemplação gerou um silêncio, e a música se sobressaiu. Uma corrente de brisa causou-lhe um leve arrepio.
— Desculpe, eu deveria ter imaginado que ficaria com frio. Venha, vamos voltar para dentro... — O tom de preocupação na voz dele esquentou o coração dela, e ela sentiu até vontade de abraçá-lo.
Enquanto caminhavam para o interior do clube, instintivamente, ele pegou a mão dela num instinto de proteção, mostrando os detalhes do lugar e contando particularidades sobre as peças expostas em pilares, com curiosidades locais, deixando clara sua paixão por aquela cidade e pela cultura local. Ela então analisou a oratória perfeita da boca que atraía seus olhos como um ímã.
— Está se sentindo bem? — Ele parou de falar ao notar que os olhos dela estavam parados em um ponto do seu rosto. Ficou desconcertado, arrumou uma mecha de cabelo atrás da orelha dela. Foi um toque tão instintivo que gerou uma intimidade escandalosa para quem acabara de conhecer alguém. O calor da bebida estava subindo, o toque simples em sua pele provou alertar pelo seu corpo: era perigo…
Foi um momento breve, intenso e cheio de informações. Aquela mulher sofrida, madura e perspicaz se sentiu adolescente novamente, nos bailes de faculdade, e, por mais incrível que pareça, esqueceu dos problemas e se deixou envolver pela música e pelos braços quentes que a conduziam de forma tão protetora. Pôde sentir o cheiro da pele, as ondas de energia que emanavam do corpo colado ao seu, sentiu a reação dele com a proximidade do seu; não queria erguer o olhar, sabia que encontraria o mar inteiro dentro do olhar dele, e já sabia que se perderia.
Sentiu que ele a abraçou gentilmente, a música mudou de ritmo e, dessa vez, as notas brincavam e projetavam notas alegres, e imediatamente as pessoas se soltaram em suas danças particulares.
Ficaram parados, ela não...
Quando sentiu que poderia se desfazer facilmente das mãos que faziam seu coração bater em ritmo de escola de samba, respirou fundo e se preparou para fazer a única coisa racional que lhe ocorreu diante do filme que passou por seu subconsciente.
Quando se aproximavam da porta, como obra do universo, ele foi reconhecido por algumas pessoas que o pararam para cumprimentar. Era a sua chance.
Tirou os sapatos, esfregou um pé ao outro e correu. Por um pequeno lance de olhar, viu a dúvida estampada nos olhos dele, viu a decepção e até mesmo o medo de que o rosto se contorceu. Viu um beijo bom, uma casa de paz; ela viu a cozinha na penumbra e ele sem camisa enquanto preparava o café, conseguiu ver as lágrimas de dor saltando do olhar cheio de imensidão, e então o som estridente de freio e o impacto...
Escuro e dor.
Não viu mais nada, talvez um barulho longe de sirenes e um frio inebriante que a envolveu.
Silêncio...
Escuro.
Não tinha mais ninguém e nada mais restou para eu te contar.
Uau, inesperado, gostei.
ResponderExcluirSeus contos são maravilhosos minha amiga, você é uma escritora nata.
ResponderExcluirGostei muito da intensidade de sua escrita! A mulher "sem nome" gera uma identificação inevitável, senão em todo o conto, mas certamente em algum momento pontual. Parabéns!
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