Déjà vu


 
Aquela crise parecia mais severa do que as anteriores, e ele tentou de tudo para se acalmar, mas nada funcionava. Estava muito longe de casa. A chuva caía com força no vidro do carro, e o céu escuro contrastava com a angústia que o sufocava, dificultando a sua respiração.
Ele parou o carro e saiu, sentindo as gotas geladas da chuva molharem o seu moletom preto. Cristian esforçou-se para relaxar a mandíbula, levantou o rosto e permitiu que a chuva levasse toda a tensão daquele instante. Se alguém olhasse para aquela situação, provavelmente pensaria em qualquer coisa, exceto numa crise intensa de ansiedade. O corpo alto e atlético tremia convulsivamente, e as mãos cerradas revelavam a força que ele estava fazendo. O seu rosto jovem e moreno exibia uma expressão raramente iluminada por sorrisos; os olhos castanho-claro tinham um ar enigmático. O modo como ele passava a mão pelo cabelo curto, quase raspado, contribuía para um semblante de grande beleza.
As roupas já estavam molhadas; mesmo com o capuz do moletom cobrindo a cabeça, as gotas escorriam pelo rosto. A estrada estava vazia e escura; o carro permanecia ligado, com os faróis refletindo a força da chuva. Cristian estava encostado no capô, com as mãos fechadas em punhos que comprimiam com muita força. Já dirigia há horas, sem saber o tempo exato. A madrugada estava fria; o barulho da chuva e a força do vento que agitava as árvores eram os únicos sons em contraste com os batimentos acelerados do coração. Sem saber o que fazer, ele gritou, gritou até perder as forças e cair de joelhos no asfalto.
Finalmente, a respiração começou a fluir novamente; o corpo molhado era sacudido agora somente pelos tremores de frio. Deitou-se no chão por completo e chorou. Como era possível passar novamente por tudo aquilo? Por mais que tentasse superar aquela dor, a solidão e o vazio eram uma tormenta constante. Mesmo com os olhos fechados, podia ver os clarões dos raios no céu, desenhando mapas e destinos inatingíveis, tornando ainda mais linda e triste aquela paisagem noturna. Precisava reagir, pensou ele. Levantou-se e entrou no carro, tirou a blusa ensopada e a deixou no chão para não molhar ainda mais o veículo.
Ligou o GPS e esbravejou ao se dar conta da distância que estava de casa. No mapa, não muito distante dali, apontava para um posto de combustíveis e conveniência. Resolveu seguir e tomar um café para tentar se aquecer; por sorte, sempre tinha uma muda de roupa no carro. Mesmo que não fosse um agasalho, era uma roupa seca. Acelerou e seguiu o restante da quilometragem. Pelo espelho, os seus olhos estavam concentrados; mesmo com a testa franzida, a expressão facial estava mais tranquila. A chuva continuava forte; a visibilidade era mínima. Ainda assim, estava correndo mais do que deveria. Com a música em alto volume, tentava não pensar no motivo da recente crise.
Aquela rota era nova; não conhecia nada daquela BR. Porém, conforme a chuva diminuía de intensidade, era possível notar as árvores dos dois lados da pista e as placas sinalizando sobre o trânsito de animais selvagens. Imaginou um pôr do sol em meio às árvores, talvez um vinho, o som de risadas, o vento nas folhas. A imagem foi tão nítida que, sem perceber, a mandíbula finalmente relaxou e as costas apoiaram-se no encosto do banco do carro. Os últimos tempos não foram fáceis. Cristian era muito reservado; no trabalho, tinha poucos amigos e, ainda assim, quase ninguém sabia detalhes da sua vida.
Mesmo quando todos se reuniam para comemorar alguma negociação, depois de todas as rodadas e no calor da bebida, ele continuava alheio às piadas e comentários com indiretas lançadas a ele. Fazia a social e saía discretamente para evitar maiores explicações; não gostava de tumultos e algazarras. Preferia passar o tempo livre deitado na sua velha espreguiçadeira, com seus livros, rodeado por seus gatos e cachorros. Mesmo morando numa área urbana, escolhera um pequeno sobrado, com jardim e um quintal.
O vento gelado tocou seu rosto assim que saiu em direção a conveniência. Mesmo sendo tarde, várias pessoas estavam no lugar, algumas sozinhas, outras em grupo, rindo e bebendo, Cristian foi até o balcão e pediu um café, sentou num canto pouco iluminado. O líquido quente foi amenizando os tremores provocados pelo frio.
Esticou as pernas, o ar estava abafado e um cheiro forte de cigarro lhe provocou um pouco de incômodo. Terminou o café, estava distraído com o burburinho das pessoas quando uma pessoa passou ao seu lado, rapidamente seus instintos foram despertos por um cheiro familiar. Olhou ao seu redor, procurando pela pessoa com aquele perfume tão conhecido. Levantou e deu uma volta no lugar, mesmo não sendo tão grande, não encontrou o cheiro novamente. Pensou ser sua mente lhe pregando uma peça. Já estava próximo à porta, então resolveu ir embora. Definitivamente não estava bem, há anos não tinha contato com ninguém com aquele perfume…
Chegando no carro, parou por um instante para apreciar a madrugada escura, uma chuva fina e gelada continuava caindo. Girou a chave na ignição, o motor e o som ligaram simultaneamente, passou a mão pelos cabelos, sentiu vontade de abrir a porta luva e procurar algo que inicialmente não sabia do que se tratava. Um pequeno caos de papéis, frascos e quinquilharias estavam ali, sua mão parou num envelope de camurça preta, não precisaria abrir, sabia qual era o conteúdo. Os dedos desvencilharam o lacre e puxaram o conteúdo, o coração palpitou de forma diferente.
Era uma foto, nela uma mulher sorrindo, cabelos revoltosos e o rosto sujo de chocolate. Sorriu porque lembrava cada detalhe daquele dia. Suspirou fundo, quanto tempo já havia passado desde a última vez, pensou, talvez dois anos, mas ainda era capaz de ouvir o som do sorriso e dos palavrões que ela dizia quando estava indignada com alguma situação. Acariciou a foto, devolveu o envelope no lugar e colocou o carro em movimento. Ainda estava mexido por todas as lembranças que o perfume trouxera. Mesmo após tanto tempo, todos os seus sentimentos eram despertos por um simples cheiro, um misto de flores, baunilha, madeira…
O perfume trazia até mesmo o som do riso largo e despreocupado. Não sabia mensurar os últimos acontecimentos, You Are So Beautiful de Joe Cocker começou a tocar, realmente todos os indícios daquele dia resultavam em uma única pessoa, levou a mão para trocar a música, mas parou o movimento ao avistar um carro parado no acostamento, não estava estacionado de forma correta, a porta do motorista estava aberta, os faróis ligados. Poderia ser perigoso parar no meio do nada para ver o que estava acontecendo, mas se lembrou do que tinha passado anteriormente. À medida que se aproximava, seu coração acelerava ainda mais, estranhou aquele tipo de reação, era só um carro parado.
Seguiu seu instinto, parou o carro e desceu, com o coração na boca, chegou na porta aberta e se separou com uma cena que inicialmente o deixou travado, porém em fração de segundos o fez lembrar do perfume, porque era o mesmo cheiro ali. Uma figura feminina recostada no volante, não sabia se chamava ou se tocava, não sabia se estava machucada, o carro não aparentava sinais de batida. A porta do passageiro estava fechada, não viu indícios de ter mais alguém com ela, então chamou uma, duas, sem resposta. Cuidadosamente tocou para conferir batimentos cardíacos, estavam fracos, quase imperceptíveis, se desesperou.
Pegou o telefone e discou o número da emergência, a atendente pediu referência do local, estava longe demais, após descrever o ambiente, foi orientado a mover a mulher para o acostamento do banco. Era tão jovem, pele morena, contorno suave do rosto, moldado por um cabelo cacheado, volumoso, foi observando e descrevendo para a atendente, percebeu alguns sinais de machucado nos braços, mas parou na mão direita que segurava um frasco preto, viu algumas pílulas no chão, a atende pediu que ele retirasse a vítima do carro e a levasse, iriam se encontrar no caminho, avistou uma bolsa, pegou por concluir que ali deveriam conter documentos pessoais.
Ao pegá-la no colo, ficou extremamente perturbado com o cheiro do perfume, mas se concentrou em acomodá-la no de passageiros do seu carro, ainda falando com a atendente da emergência, descreveu como pode todos os detalhes que dispunha e começou o deslocamento em direção a cidade. Dirigia para salvar a vida daquela mulher, entendeu o sinal do perfume na conveniência. Era preciso chegar ali, Cristian dirigia e monitorava a mulher desacordada no banco de passageiros, o que poderia ter motivado aquela atitude desesperada, quem era aquela mulher? Um rosto tão jovem, e o que seriam aquelas marcas em seus braços? Jamais se imaginou em uma situação parecida, justo ele.
Cristian vivia um luto diário, para não despertar a piedade da família, resolveu se afastar do convívio de todos aqueles que estavam presentes naquele período de sofrimento. Não queria ser questionado sobre seu estado de espírito, ou sua evolução emocional, queria paz e solidão. Quando visitava o período que perdera a melhor parte da sua vida, o resultado era aquelas crises de ansiedade que torturava. Se fechou para qualquer sentimento de prazer, felicidade, os únicos sorrisos verdadeiros eram tirados por seus gatos. Gostava do silêncio da sua casa, dos seus livros e o fato de não ter que dar satisfação sobre nada da sua vida.
Foram vários quilômetros de angústia, até finalmente encontrar a ambulância da emergência. Os paramédicos rapidamente prestaram os primeiros socorros enquanto era novamente questionado sobre as circunstâncias que havia encontrado a vítima. Repetiu tudo, olhando os médicos colocando o balão de oxigênio e erguendo a maca na ambulância. Anotaram seus dados e pediram para que não deixasse a cidade, possivelmente a polícia iria tomar um novo interrogatório sobre a situação da vítima. Foi tudo muito rápido, o carro então se distanciou rapidamente em direção ao hospital e ele se viu novamente sozinho, porém seu carro estava tomado pelo cheiro daquele perfume.
 
Continua...

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